quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A torcida se levanta porque o jogo já começou


Tiarajú D’Andrea

Um espectro ronda a cidade de São Paulo, é o espectro dos levantes populares.

Seja na chamada periferia consolidada ou nas favelas da zona sudoeste, uma série de acontecimentos vêm desvelando o sentimento de insatisfação dos moradores de bairros populares de várias regiões da cidade nos últimos tempos. A fratura social está exposta. A revolta, latente.

Um breve e incompleto levantamento dos conflitos entre a população e a polícia nos últimos tempos nos revela uma verdadeira cartografia de algo que sucede de maneira progressiva e em vários pontos desta maltratada urbe. Acontecimentos que uma visão ingênua pode interpretar como dispersos, são na verdade processos sociais mais amplos. Para tanto, basta observar as duas causas principais desses levantes: disputas pelo território urbano e violência policial. A versão oficial insiste no argumento de combate ao tráfico. Um olhar refinado sobre a nossa história perceberá que o objetivo principal da repressão é manter as classes populares amedrontadas e controladas.

Compa de cidade: se você ainda não percebeu, é melhor refinar seu olhar. Vejamos...

Quem passa pela Marginal Tietê perceberá que a maioria das favelas que beiravam a via já desapareceram. Historicamente, se consolidou nos terrenos de várzea à beira do rio e nas alças de acesso uma série de ocupações irregulares. No entanto, a Copa do Mundo de 2014 está chegando e a prefeitura municipal instituiu um programa cujo nome é um belo eufemismo: “São Paulo de Portas Abertas”. O objetivo desse programa é a remoção de todas as favelas ao lado das marginais, mas sem solução habitacional. Na favela do Sapo, na Água Branca, a população não aceitou o cheque-despejo. Parou a Marginal Tietê, como única forma de ser vista, e foi duramente reprimida pelas forças da ordem.

Ainda no caminho das grandes avenidas, morrendo na contramão e atrapalhando o trânsito, o Jardim das Rosas e o Jardim da Conquista, no Iguatemi, zona leste, estão sendo retalhados para a abertura da continuação da avenida Jacú-Pêssego. Na outra ponta da mesma avenida, o bairro União de Vila Nova em São Miguel Paulista foi dividido pela metade. Em vários pontos da Cidade Tiradentes também ocorreram remoções, e muitas acabaram em confronto. Na Brasilândia, zona norte, também. No centro da cidade, a favela do Moinho ainda existe e resiste, mesmo com um sem fim de ameaças e documentos duvidosos que pedem juridicamente seu desaparecimento.

Na zona sul, o loteamento Olga Benário foi destruído de forma tão violenta que até parte da imprensa ficou chocada. No Grajaú, Parque Cocaia e Cantinho do Céu padecem com intimidações e ameaças e estão nos planos de remoção dos órgãos oficiais. Neste caso, vale notar que as remoções se justificam pelo discurso ambientalista. Da mesma forma que no caso do Jardim Pantanal, na leste. O assunto indizível é que foi o próprio poder público quem muitas vezes incitou a ocupação desses terrenos, assentando neles populações removidas de áreas valorizadas da cidade. Contudo, com a expansão territorial da lógica mercadológica que a tudo incorpora, esses terrenos de periferia só realizarão todo seu potencial enquanto mercadoria se forem valorizados ao máximo. Assim, a dinâmica que substitui ocupações populares por parques à beira da represa dá seqüência à lógica de valorização da mercadoria-territó rio e do entorno desse território. É por essas e outras questões que o poder público instrumentalizado por certos interesses tolera as inúmeras chácaras e mansões nas áreas de mananciais. Ou seja, a lei para o rico não vale. E isso porque a lei, num sistema capitalista, tem dificuldades de ser colocada em prática quando confrontada com a onipotência da lógica da realização dos valores de uma mercadoria

Infelizmente, o discurso ecológico, novo e socialmente consensuado, neste caso (como em outros) foi utilizado para levar adiante velhos interesses de classe.

Na zona sudoeste, a sombra dos edifícios da Berrini esconde o sol. A Ponte Estaiada tinge o Rio Pinheiros de amarelo e o chão das pistas de vermelho sangue. Num despejo violento e juridicamente ilegal, parte da favela Real Parque desapareceu. Belo e especulando, o terreno onde outrora viviam famílias hoje é mato puro. Como nessa região a iniciativa privada opera com mais força, a disputa por territórios também tem suas sutilezas. O setor imobiliário aparece com dinheiro vivo, farto. A coerção econômica sobre a população favelada transforma localização num bom negócio. Nesse caminho, parte da favela Jardim Panorama foi comprada. Parte da favela Coliseu também foi comprada e a favela Jurubatuba, já em Santo Amaro, não aceitou a proposta. No olho do furacão, e sem maior alarde, a favela do Jardim Edite já desapareceu.

Deslocando um pouco o foco de análise das disputas “pelo” território para os mecanismos de controle social “no” território, pode-se observar como o ano de 2009 está quente. No centro das revoltas, a violência policial. Para todos os casos a solução tem sido mais e mais repressão. Nesse caldo de insatisfação, grandes levantes populares ocorreram no Jaçanã; na favela Tiquatira, no bairro da Penha (novamente parando a Marginal); na Vila Jacuí, na zona leste; e há bem pouco tempo na favela de Heliópolis. Se nos casos relatados a polícia reprimiu uma insatisfação popular causada pelas condições de vida e pela própria atuação policial, é de se notar como uma outra modalidade de repressão vem cada vez mais fazendo parte do repertório policial: trata-se da famosa Operação Saturação.

Nos últimos anos, vários bairros e favelas foram invadidos pela polícia com a escusa do combate ao tráfico e à criminalidade. A lista de locais “saturados” já é extensa: favela da Rua Alba, no Jabaquara (bem pertinho da extensão da avenida Roberto Marinho...); Jardim Elisa Maria, na Brasilândia; Jardim Elba, no Sapopemba; Morro Grande, na zona noroeste; Morro do Samba, em Diadema; seis favelas do Parque Novo Mundo; favela Pantanal, na beira da represa, zona sul; Parada de Taipas; favelas Buraco Quente e Jardim Colombo, na zona sudoeste, dentre outras. Em todos os casos proliferaram as denúncias de abusos, aumentando o mal estar na população.

Síntese máxima de todos estes acontecimentos brevemente relatados é o que ocorre na favela Paraisópolis. No meio do bairro mais rico de São Paulo (e bem pertinho do estádio do Morumbi...), a favela Paraisópolis foi o palco de um levante popular em fevereiro último. Cada lado contou de um jeito as causas do acontecimento. A polícia recorreu à versão utilizada em qualquer contexto: a de que “traficantes” depois da morte de um dos seus, “incitou a população ao tumulto”. Já os moradores tinham outra versão, onde as causas poderiam ser várias somadas: gente inocente tinha morrido dias antes; a polícia estava barbarizando havia tempos na favela; a urbanização que ora ocorre no lugar traz tensão e insegurança; a favela tem dificuldades de se representar politicamente por causa da presença de agentes do entorno; grande parte da população do local se mantém submetendo-se a más condições de trabalho; ou mesmo a mais simples e básica de todas as causas (aquela que ninguém quer ver): viver numa favela ao lado de tantas mansões é uma humilhação cotidiana. A panela de pressão que é o Paraisópolis um dia explodiu. Assim como a explicação dada, a resposta oficial foi simplista: mais repressão, com a implantação de uma Operação Saturação sem precedentes. Pobre Paraisópolis, tão longe de Deus e tão perto do Morumbi.

O caso de Paraisópolis é exemplar pelos elementos que contêm: repressão policial; intervenções urbanísticas, relações de trabalho humilhantes e Operação Saturação. Em todos os outros levantes ocorridos, algum desses elementos esteve presente como causa.

Cabe destacar que elementos aqui citados articulam-se de maneira indissociável do problema central, que foi, é e continuará sendo um problema entre as classes sociais. Dessa maneira, levar adiante os interesses das classes dominantes tem como contrapartida o necessário controle e a necessária repressão sobre a população pobre. No entanto, esta repressão tem que ser velada, e o véu que se coloca é o eficaz discurso de que a repressão é sobre o tráfico de drogas, e não sobre os pobres em geral. Deste reducionismo inicial deriva outro reducionismo discursivo necessário: o de que os levantes populares são incitados pelo tráfico. Do reducionismo discursivo surge a justificativa necessária para controlar, vigiar, reprimir e punir grande parte da população. Métodos de controle existem vários, desde os mais sofisticados, como alguns programas sociais, até os mais explícitos, ou seja, a guerra aberta, a intervenção em territórios, a matança generalizada.

Processos de luta pela terra na cidade, derivada de interesses do setor imobiliário e de construtoras, de um lado, e da população moradora, de outro, também tendem a se intensificar. O boom imobiliário por qual passa a cidade de São Paulo incide sobre os preços dos terrenos, valorizando- os. Concomitante e articulado a este processo está a ação dos agentes interessados em fechar grandes negócios com o advento da Copa do Mundo de 2014. Ambos processos aumentam a pressão sobre a população pobre moradora de terrenos valorizados e valorizáveis. Todavia, é necessário destacar que os métodos de expulsão e remoção de populações pobres não se baseiam apenas em mecanismos econômicos (aumento do preço da terra) e jurídicos (propriedade alegada de determinada área). Intervenções policiais em áreas com litígio pela propriedade são recorrentes e necessárias para a resolução dessas disputas. Isso vem ocorrendo com freqüência, diminuindo a resistência da população. Logo, o argumento que aqui se quer colocar é o de que a repressão não é elemento secundário, utilizado só em último caso. A repressão é um elemento necessário e tão importante quanto os outros nas disputas pelos territórios urbanos.

Meio sem saber o que quer, da mesma forma que não é tão evidente contra quem se luta, a população se levanta. A nítida visão, no entanto, é a de que a fratura social fica cada vez mais desvelada, mais a nu. Sem mediações ou hipocrisias. Sem falsas esperanças.

Até a Copa de 2014, muita água vai rolar debaixo dessa Ponte.

Tiarajú D’Andrea é mestre em sociologia pela Universidade de São Paulo. É autor da dissertação de mestrado “Nas Tramas da Segregação: O Real Panorama da Pólis”.

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